Entre nozes, sonhos e esquinas (ou Por achar que sei)
Sávio Drummond. Abril, 2010.
Mas, por achar que sabia, eu disse:
- Então esse raciocínio de que "trabalho" tem esse nome porque dá trabalho é como querer colocar as meias após os sapatos. E então? Quem nasceu primeiro? O ovo ou a galinha? Sabe que que é? É que a gente tem mania de criar fôrmas em cima do próprio molde... e a matriz a gente descarta... e então, ao fim de tudo, já não sabemos mais como eram as origens, porque elas vão se distanciando aos poucos. São 23:45h... está começando a esfriar.
Olhei para um dos três postes visíveis à minha frente... pequenos insetos rodopiavam em torno da luz. Por que apenas um dos três postes os atrai? Que força invisível aos meus olhos faziam a diferença entre as três luzes, que só aqueles insetos podiam notar? E no tardar da madrugada, eles estariam no chão... seis patas entrecruzadas sobre o corpo... corpos inertes. Era sempre assim... a luz que os traz é a luz que traga suas forças... até o fim. Antes que eles aprendessem a evitar o fardo.
Mas fui surpreendido, ainda:
- Sabe, rapaz, vc me parece esperto. Você pensa na origem das palavras? Você é sempre esperto assim?
Esperto, eu? Ele havia sido irônico? Não sei... não o olhei nos olhos naquele instante... ainda fitava os atos derradeiros do balé ao redor da luz. Mas respondi, não lembro bem se em voz alta ou em pensamento:
- Só quando estou acordado. À noite, se eu durmo, meu cérebro se ocupa de criar sonhos inúteis, contos de fadas, onde eu e minha paixão da minha vida estamos numa praia deserta vendo o pôr do Sol. E ao acordar então descubro que era só desperdício, e que a função de alguns sonhos é construir tecidos xadrez branco no branco e preto no preto, donde então descubro que a paixão da minha vida está construindo um castelo de areia dentro do chapéu do mágico de Oz... e é essa a quilométrica, tênue e por muitas vezes sutil distância que separa sonhos comuns nas madrugadas adentro de sonhadores compulsivos. Cabe a todos nós não calcularmos essas tênues distâncias... e não imaginar a comunhão nos elos dos tecidos xadrez que se criam dentro de todos nós... ou, num movimento físico invisível, descobriremos a ponte entre os mundos... E como dizia Stephen Hawking no seu bestseller pop, até o universo cabe numa noz. Não lembro bem se dentro dela ou na casca... mas também não li o livro. Para um esquilo, a casca de uma noz é o que separa a realidade árdua no seu trabalho de juntar nozes pré-hibernais do universo desejado contido dentro dela. É essa a distância entre os universos de um esquilo. Um universo vivido. Um universo inteiro desejado, invisível, porém pressuposto, contido numa noz. Uma casca separando os universos. Cães separam sonhos e realidade? Cães e homens são unidos por tantos laços comuns, mas talvez o maior deles é que são ambos grandes sonhadores. Sim, qualquer madame de shopping center distraída com suas vitrines de cristais inúteis sabe o quanto os seus poodles cor-de-rosa, verdadeiros algodões-doces ambulantes, e todos os cães de verdade sonham, e rangem sonhando, e correm sonhando, movendo suas pernas traseiras como pedais de bicicleta girando involuntariamente livres quando alcançam o céu. Mas se há algo que separa os sonhos de cães e homens é o fato de que os sonhos caninos nunca haverão de os trair, anunciando em voz demente o nome da amante na metade da cama dividida com a esposa. E os homens acordam mais tolos, depois de serem tolos sonhando castelos de areia impermeáveis e indestrutíveis às ondas na praia, como só sonhos permitem ser. E se descobrem fracos e enganados por algo que nem mesmo racionalizaram, ao perceber que no abrir dos olhos, a praia paradisíaca sobre cuja areia você estava sentado ao lado da mulher dos seus sonhos (pois é... olha ele, o castelo, olha ela, a mulher) estava a milhas e milhas do seu mundo genialmente torto... e você estava a muito mais que dois, três ou mil passos do paraíso e do seu amor onírico. Salve Evandro. Salve Charlie Brown, o sonhador dos sonhadores, o mestre das esperanças que não se acabam... Se todas as esperanças nas vidas de todas as pessoas fossem verdes como se desenham, fossem verdes como são os insetos que, via de regra, carregam esse nome, elas durariam mais. Não seriam as últimas a morrer, é claro... seus detentores carregariam esse troféu antes. Mas durariam mais, porque o verde que camufla é o que assegura passar mais tempo despercebido aos olhares dos perigos que a cercam. Por sorte ou por acaso, ela fingiu ser folha, por acaso ou desprezo, a morte deixou passar. Mas a vida é feita de contrastes, o mundo não é unimatiz, unicolor, e há um mundo cinzento no concreto urbano no qual vivemos e morremos, e nele, a esperança verde perde sua função, e vira alvo fácil, e morre antes. Há alvos fáceis em todas as esquinas. E há mais armas do que alvos, nas linhas retas que traçam os vértices de cada esquina. Uma mão estendida, um olhar trocado, uma esperança que se esvai, uma lembrança que não quer morrer, um sorriso que atrai, jornais, sonhos, fome, orgulhos e vaidades... tudo é alvo, tudo é arma. E sem camuflagem, sem castelos de areias impermeáveis e indestrutíveis, sem as cartolas que revelam magias dos mágicos de Oz travestidos nos sinais, as armas ficam invisíveis, os alvos explodem em cores berrantes.
Ali do meu lado, na estação, um homem navega seus sonhos, sem saber do ovo nem da galinha, de tecidos xadrez, nem dos universos de esquilos precavidos. Apenas navega, por entre as ilhas de um universo inteiro que cabe dentro de si. E por não saber, livremente ele sonha.
E por achar que sei, meus sonhos são acorrentados, e não posso navegá-los, porque não há força no vento das esperanças que movem as velas por entre os mundos dentro de mim.
sexta-feira, 23 de abril de 2010
domingo, 14 de março de 2010
A festa
Penso aqui com meu umbigo que eu nunca sou quem de fato sou, numa festa.
Então sugiro que quem queira me conhecer para além do traje, dos óculos, do rosto, esteja presente até o fim da festa, ou me acompanhe até esse momento, se possível for. Numa festa, qualquer que seja, eu sou na maior parte do tempo um tímido chato e talvez também um chato tímido. E isso é diretamente proporcional ao número de presentes no local, de forma que torna-se compreensível que é no exaurir dos tempos e das presenças que aos poucos vai se esmiliguindo a carapaça torta que traveste o olhar que me revela, o sentimento que me traduz, o gesto que me explicita em mim mesmo.
Não nego que há algo que talvez se mantenha imutável, até mesmo desde o início: a intransferível multitransparência que trazem os meus olhos no seu prazer de observar e buscar a beleza, e numa festa ela se traduz nas sutilezas dos gestos, das nuances e das feições femininas. Onde há um rosto, um gesto, uma pose enriquecidamente dotada de vantagens estéticas naturais, é bom que se diga nos tempos de hoje, os meus olhos entortam em assisti-los, tal qual a vareta radiestésica vibracionalmente se centra em seu objetivo de descobrir o até então oculto. É como o prazer silencioso de olhar uma bela foto, com um prolongamento naturalmente maior, dada a diferença de que imagens numa foto não mudam de posição, não ajeitam os cabelos escorridos sobre os ombros, não esboçam magnéticos sorrisos repentinos e não devolvem um olhar. Então é como olhar várias belas fotos numa sequência variável sobre um mesmo tema... e um tanto mais que isso.
Numa festa sou um viajante solitário dentro de um trem... o pensamento, cúmplice absoluto do silêncio de toda uma intimidade, está absolutamente voltado ao que os olhos vêem e então variam com a velocidade do que captam, das árvores que passam em curto-circuito – tal qual uma repetição de minideja-vus – pelas margens dos trilhos, à página cheia de letras de um jornal lentamente lido pelo senhor no assento ao lado, numa partilha unilateral originada pela sede da curiosidade que não se coube em si.
Festas são um carimbo de aprovação e autenticação da minha audição seletiva. Na maioria das vezes sou vitimado por uma surdez automática e mesmo involuntária se o repertório que desenha o soundtrack do filme interminável foge daquilo que me atrai nos vastos campos da música.
Imagino que ao final desse texto, não mais serei chamado por qualquer dos leitores (se houver de existirem, se houver de parar esse texto em alguma das minhas células virtuais de respiração) para qualquer futura festa, qualquer futuro chá de bebê, qualquer futuro batizado de cachorro, papagaio e hamster. Entenda, leitor, repito novamente: me chame para uma festa, mas por favor, não me julgue um mala, um introspectivo, um egoista, um insensível, um autista sem que cheguemos antes no momento em que mais da metade do bolo já foi consumida, 85% das cadeiras antes ocupadas já respiram aliviadas o vazio da sua existência agora inútil, cada música do repertório a girar nos infinitos cds já se repetiu algumas dezenas de vezes e a casca que me impede de ser quem sou, com a naturalidade mais crua e explícita de quem está num sanitário lendo um livro ou com velhos amigos-irmãos assistindo a um filme cômico na sala do apartamento, já se transformou numa tênue e quase despedaçada película. Então me ofereça um pedaço dos 15% que restaram do delicioso bolo e sentemos junto ao pequeno grupo que restou para falarmos de tudo que a avidez insolúvel de uma festa não permite falar, com a cumplicidade e interabilidade de olhar que o descompasso do liquidificador de almas flutuantes não tornaria acessível. E talvez até cantemos juntos, nesse último momento, entre sorrisos transparentes, o que a caixa mecânica a amplificar os sons gravados nos cds não saberia fazer soar por tanto tempo dentro de cada um de nós.
Penso aqui com meu umbigo que eu nunca sou quem de fato sou, numa festa.
Então sugiro que quem queira me conhecer para além do traje, dos óculos, do rosto, esteja presente até o fim da festa, ou me acompanhe até esse momento, se possível for. Numa festa, qualquer que seja, eu sou na maior parte do tempo um tímido chato e talvez também um chato tímido. E isso é diretamente proporcional ao número de presentes no local, de forma que torna-se compreensível que é no exaurir dos tempos e das presenças que aos poucos vai se esmiliguindo a carapaça torta que traveste o olhar que me revela, o sentimento que me traduz, o gesto que me explicita em mim mesmo.
Não nego que há algo que talvez se mantenha imutável, até mesmo desde o início: a intransferível multitransparência que trazem os meus olhos no seu prazer de observar e buscar a beleza, e numa festa ela se traduz nas sutilezas dos gestos, das nuances e das feições femininas. Onde há um rosto, um gesto, uma pose enriquecidamente dotada de vantagens estéticas naturais, é bom que se diga nos tempos de hoje, os meus olhos entortam em assisti-los, tal qual a vareta radiestésica vibracionalmente se centra em seu objetivo de descobrir o até então oculto. É como o prazer silencioso de olhar uma bela foto, com um prolongamento naturalmente maior, dada a diferença de que imagens numa foto não mudam de posição, não ajeitam os cabelos escorridos sobre os ombros, não esboçam magnéticos sorrisos repentinos e não devolvem um olhar. Então é como olhar várias belas fotos numa sequência variável sobre um mesmo tema... e um tanto mais que isso.
Numa festa sou um viajante solitário dentro de um trem... o pensamento, cúmplice absoluto do silêncio de toda uma intimidade, está absolutamente voltado ao que os olhos vêem e então variam com a velocidade do que captam, das árvores que passam em curto-circuito – tal qual uma repetição de minideja-vus – pelas margens dos trilhos, à página cheia de letras de um jornal lentamente lido pelo senhor no assento ao lado, numa partilha unilateral originada pela sede da curiosidade que não se coube em si.
Festas são um carimbo de aprovação e autenticação da minha audição seletiva. Na maioria das vezes sou vitimado por uma surdez automática e mesmo involuntária se o repertório que desenha o soundtrack do filme interminável foge daquilo que me atrai nos vastos campos da música.
Imagino que ao final desse texto, não mais serei chamado por qualquer dos leitores (se houver de existirem, se houver de parar esse texto em alguma das minhas células virtuais de respiração) para qualquer futura festa, qualquer futuro chá de bebê, qualquer futuro batizado de cachorro, papagaio e hamster. Entenda, leitor, repito novamente: me chame para uma festa, mas por favor, não me julgue um mala, um introspectivo, um egoista, um insensível, um autista sem que cheguemos antes no momento em que mais da metade do bolo já foi consumida, 85% das cadeiras antes ocupadas já respiram aliviadas o vazio da sua existência agora inútil, cada música do repertório a girar nos infinitos cds já se repetiu algumas dezenas de vezes e a casca que me impede de ser quem sou, com a naturalidade mais crua e explícita de quem está num sanitário lendo um livro ou com velhos amigos-irmãos assistindo a um filme cômico na sala do apartamento, já se transformou numa tênue e quase despedaçada película. Então me ofereça um pedaço dos 15% que restaram do delicioso bolo e sentemos junto ao pequeno grupo que restou para falarmos de tudo que a avidez insolúvel de uma festa não permite falar, com a cumplicidade e interabilidade de olhar que o descompasso do liquidificador de almas flutuantes não tornaria acessível. E talvez até cantemos juntos, nesse último momento, entre sorrisos transparentes, o que a caixa mecânica a amplificar os sons gravados nos cds não saberia fazer soar por tanto tempo dentro de cada um de nós.
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