domingo, 14 de março de 2010

A festa

Penso aqui com meu umbigo que eu nunca sou quem de fato sou, numa festa.
Então sugiro que quem queira me conhecer para além do traje, dos óculos, do rosto, esteja presente até o fim da festa, ou me acompanhe até esse momento, se possível for. Numa festa, qualquer que seja, eu sou na maior parte do tempo um tímido chato e talvez também um chato tímido. E isso é diretamente proporcional ao número de presentes no local, de forma que torna-se compreensível que é no exaurir dos tempos e das presenças que aos poucos vai se esmiliguindo a carapaça torta que traveste o olhar que me revela, o sentimento que me traduz, o gesto que me explicita em mim mesmo.

Não nego que há algo que talvez se mantenha imutável, até mesmo desde o início: a intransferível multitransparência que trazem os meus olhos no seu prazer de observar e buscar a beleza, e numa festa ela se traduz nas sutilezas dos gestos, das nuances e das feições femininas. Onde há um rosto, um gesto, uma pose enriquecidamente dotada de vantagens estéticas naturais, é bom que se diga nos tempos de hoje, os meus olhos entortam em assisti-los, tal qual a vareta radiestésica vibracionalmente se centra em seu objetivo de descobrir o até então oculto. É como o prazer silencioso de olhar uma bela foto, com um prolongamento naturalmente maior, dada a diferença de que imagens numa foto não mudam de posição, não ajeitam os cabelos escorridos sobre os ombros, não esboçam magnéticos sorrisos repentinos e não devolvem um olhar. Então é como olhar várias belas fotos numa sequência variável sobre um mesmo tema... e um tanto mais que isso.

Numa festa sou um viajante solitário dentro de um trem... o pensamento, cúmplice absoluto do silêncio de toda uma intimidade, está absolutamente voltado ao que os olhos vêem e então variam com a velocidade do que captam, das árvores que passam em curto-circuito – tal qual uma repetição de minideja-vus – pelas margens dos trilhos, à página cheia de letras de um jornal lentamente lido pelo senhor no assento ao lado, numa partilha unilateral originada pela sede da curiosidade que não se coube em si.
Festas são um carimbo de aprovação e autenticação da minha audição seletiva. Na maioria das vezes sou vitimado por uma surdez automática e mesmo involuntária se o repertório que desenha o soundtrack do filme interminável foge daquilo que me atrai nos vastos campos da música.

Imagino que ao final desse texto, não mais serei chamado por qualquer dos leitores (se houver de existirem, se houver de parar esse texto em alguma das minhas células virtuais de respiração) para qualquer futura festa, qualquer futuro chá de bebê, qualquer futuro batizado de cachorro, papagaio e hamster. Entenda, leitor, repito novamente: me chame para uma festa, mas por favor, não me julgue um mala, um introspectivo, um egoista, um insensível, um autista sem que cheguemos antes no momento em que mais da metade do bolo já foi consumida, 85% das cadeiras antes ocupadas já respiram aliviadas o vazio da sua existência agora inútil, cada música do repertório a girar nos infinitos cds já se repetiu algumas dezenas de vezes e a casca que me impede de ser quem sou, com a naturalidade mais crua e explícita de quem está num sanitário lendo um livro ou com velhos amigos-irmãos assistindo a um filme cômico na sala do apartamento, já se transformou numa tênue e quase despedaçada película. Então me ofereça um pedaço dos 15% que restaram do delicioso bolo e sentemos junto ao pequeno grupo que restou para falarmos de tudo que a avidez insolúvel de uma festa não permite falar, com a cumplicidade e interabilidade de olhar que o descompasso do liquidificador de almas flutuantes não tornaria acessível. E talvez até cantemos juntos, nesse último momento, entre sorrisos transparentes, o que a caixa mecânica a amplificar os sons gravados nos cds não saberia fazer soar por tanto tempo dentro de cada um de nós.

Um comentário:

Poemas de Sótão e Porão II disse...

Belíssimo texto, daqueles que vem da festa mesmo.
Sua alma, sua cara, sua inusitada timidez, seu casual e contextual encantamento.
Ao lê-lo, antes daqui, lembrei de você na festa – nossas festas – cantante e, por vezes, excepcionalmente e intimamente dançante.
E sorri muito... de emoção e de alegria. Graças!
Entre o vou ou fico, e o ser ou não ser, soube da paixão coletiva que você despertou na festa.
Aniversário de novos encontros, dos mais jovens aos octogenários. Lindo, isso!
E você lá, o anjo caído do céu, a inundar de felicidades os espíritos ávidos de carinhos e ternuras de todos os presentes.
Doando, ao vivo e a cores, a mais bela e mais emocionante prenda de aniversário: poéticas canções. Fios sonoros tecidos na alma a ecoar amorosamente nas (das) cordas vibrantes do seu violão. Voz da vida.
Sempre assim seja.
Bravíssimo!