terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Era preciso regar as novas flores


Ela guardou tanto as flores de um jardim antigo, que esqueceu de perceber as cores novas que haviam de surgir no seu caminho.
E se fez casulo, e se guardou, e ao invés de ganhar asas, enredou-se no tempo e no vão das causas perdidas.
E não viu que enquanto esperava a ressurreição de flores tombadas pelo desgaste dos tempos, um sol rodopiava lá fora, e clamava, e pedia que regasse o botão a florescer em novos tons entre agostos que evitavam ser meras cinzas e verões tingidos de azuis marinhos-celestiais.
Ela viveu de podar os jardins à sua volta e a tecer e remendar as bordas de um mundo que já se fazia impalpável à sua realidade.
Ela cultivava sonhos moribundos, e pensava fazê-los viver, qual mãe tentando ressuscitar a cria morta.
E lá fora, um mundo inebriado em esperanças vãs ainda girava carregando girassóis. Até o derradeiro canto dos cisnes... e o murchar das últimas teimosas pétalas.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

Dos tempos das coisas


Saudade é evitar o último abraço sobre o chão do porto. É evitar os olhos ali na foto sobre a mesa por já não poder ter o olhar. É deitar calado enquanto grita o peito...e acordar vazio enquanto a alma transborda o que restou.
Saudade é uma caixa aberta na memória, cujas chaves o tempo atirou ao mar.
É a sombra deixada nos caminhos que não se trilham mais de uma vez...
Saudade é aquele girassol que persegue a luz sabendo-se conformado à sua inércia de girar sobre seu próprio mundo e apenas isso... e não poder alcançar o sol.
É querer dizer tanto que o silêncio se torna a única coisa que nos resta para traduzir o coração.
Saudade é tanto, é tanto...mas é tanto que os homens tolos, dizendo-se e querendo-se sábios, não conseguem encontrar a tradução, infelizes algozes de um sentimento sem nome...
É metade de tudo que já escrevi um dia e foi deixado na velha gaveta dos medos daquilo que o mundo não entenderia...
Porque é só o que resta quando o tempo nos leva até as tantas fantasias de outrora.
Porque é só o que grita no corredor silencioso que destrói a razão. E não se cala fácil e não se quer perder.
Porque saudade é querer ser o cais e o mar ao mesmo tempo, para não se deixar vivê-la...
Uma canção em tempo presente

Quem fará a canção dos nossos tempos, anos 90, anos 2000?
Que traduza a transparência cega dos nossos dias, que ensine aos filhos do futuro a nostalgia de ouvir um passado que não te pertence.
Que fale, como falaram um dia, nas entrelinhas, sutil e avidamente, de um Brasil anos 60, de um exílio, do silêncio lúcido dos loucos nas esquinas, a testemunhar uma guerra vã politizada.
Haverá uma canção para falar da política dissolúvel e teatral, dos poucos heróis a morrerem honrados ou de índios queimados pelas ruas da capital arquitetada por um sonhador?
Ouvirão, aqueles que estão por vir, uma melodia a falar de um presidente estadunidense desprezado pelo povo da nação mais patriota do mundo? Ou de uma guerra teleguiada pelos gritos injustos das incertezas? Ou de decapitações em série transbordando o mar invisível da internet qual cartas de amor nos tempos em que amar não era teatro e nem tampouco brega?
Se ouvirá, quem sabe, no bar da esquina, a narrativa em tom maior de um ex-metalúrgico no trono presidencial, viciado em auto-publicidade pseudo-modernista trtavestida em bonés coloridos, skates radicais, guitarras e embaixadinhas frustradas?
Ou de crimes altamente organizados nas favelas e no senado, como já se ouviu um dia.
Alguma canção, qualquer que seja, martirizará o Sol que seca os farrapos em um varal das novas favelas?
O mesmo Sol a enrubescer o rosto de um papa já trêmulo e corcunda a pedir perdão, rodeado pela luxúria áurea dos tiranos, proferindo inconsistente seu derradeiro latim.
Há que se fazer a canção dos nossos tempos, antes que o sol se ponha, antes que o tempo passe, e já não nos sobre tempo para ouvir uma canção
Palavras

Palavras são estrelas
que mortas, ainda brilham
São cortes na garganta
Que rompem o silêncio
São gritos dentro d’alma
Ganhando a liberdade
São grãos do pensamento
Que vagam pelo ar
Do Tempo dos Sonhos (ou Carta para ser guardada na última gaveta)


Vê. Ainda trago nos olhos aquele brilho que um dia vistes.
Talvez sem tanta certeza no olhar. Mas ainda brilham.
Meu pequeno mundo ainda cabe no canto escuro do porão.
E continuam vivos aqueles tantos sonhos que sonhei um dia.
Decerto já nem são mais tantos, mas ainda estão guardados,
no fundo abismo da esperança vã. Adormecidos pela canção do tempo.
Aquela fotografia resiste, entre os papéis de outros passados,
pobre refém do meu medo de mudar as coisas.
E o mais difícil é entender por que, se no meu silêncio as imagens não têm tempo,
e a voz que ainda ecoa já não é a que eu queria.
Quem sabe um dia, sem medo, nossos destinos se encontrem novamente.
E a nossa vida gire feito um jogo, feito criança, o carrossel da nossa infância.
E o tempo avise que sonhar não é preciso, e que o fruto que deixamos voltou a ser semente.
Voltassem então os velhos vícios de achar no tom toda a magia de cada erro e cada acerto.
A velha estrada unindo a mesma sina, e os mesmos passos caminhando para um mesmo fim.
Sem o cais a nos dizer que é hora de voltar, de chegar, de temer o horizonte mais distante.
Minha poesia está mais pobre, tenta respirar a pouca loucura que me resta.
Já nem escrevo cartas, não penso em mudar minha feia caligrafia. Muito menos o mundo.
Pouco a pouco, com uma coragem incerta, tenho cantado minhas canções,
fiéis testemunhas da minha timidez.
Mas, além dos riscos, por trás das luzes, rasgando a superfície do meu pequeno dia-a-dia,
Ainda sou eu a escrever essas linhas, sem razão, sem pressa, sem rimas, sem ensaios, sem enredo.
Tentando imitar as curvas do tempo, tentando traduzir a vida. Torto, mas lúcido: como há de ser.



Do tempo dos sonhos II

Vê, mais uma vez o tempo é rei e escravo
Quem dera sermos nós naqueles tempos, quem dera fôssemos filhos
De ventos de moinhos que um dia giraram por nós
Quais flores ainda passam pelos nossos jardins?
Se hoje são tanto mais pedras que a vida que um dia por ali passou?
Quem herdará nossos cantos, quem fará vibrar o tom da voz dos que virão,
Se do tempo que nos sobra tão pouco há para se fazer cantar?

Agora, além dos medos, pairam anjos, cupidos desistentes, cadentes esperanças,
deuses ateus e descrentes, sobre o vão dos nossos céus
Quem dera sermos mais, sermos os filhos e pais do sonho que se plantou
Quem dera, talvez, sermos tanto que nem mesmo nosso canto pudesse se traduzir
Ai do cais, que aprendeu a não se despedir dos que se vão,
Ai de nós, que nunca aprenderemos com o cais
que os tempos que se vão já não nos voltam mais.
                                                                
João Ninguém da Silva

Levanta pra cuspir o jejum de ontem à noite
Fila a média com pão na padaria da esquina
E vai vender flores, lindas cores, ainda vivas,
para os mortos do cemitério do comércio.
Esse é o João e, a cargo do seu nome, essa é sua sina.
Mal cabem seus pés no chão do ônibus,
cuja lotação é sempre ilimitada.
Mal cabe em si o João de desgosto ao encontrar uma paixão amarradeira:
uma antiga namorada
Um filho pendurado em cada braço, um guardado barriga adentro
e talvez, quem sabe, diz a regra, um planejado em pensamento.
Como se sua vida fosse o paraíso e o pão de cada dia fosse o vento.
E João desdenha o fato e lhe pergunta a hora.
Mas a mulher não o escuta e, se o escuta, o ignora.
Talvez reconhecesse naquele rosto envelhecido uma cicatriz pra vida inteira,
quando o João ainda novo, transformara em meta uma simples brincadeira,
pois pra matar a fome e pra ganhar a vida, João perdeu o rumo e foi bater carteira.
Mas hoje ele vive de quem morre, tendo as flores como o elo dessa trama.
E de quem a vida leva sete palmos terra abaixo,
João Ninguém da Silva segue a sorte do seu rumo,
levando pouco a pouco o troco desse drama.
Há quem diga que ele ainda toca a vida para a frente,
e acredita que um dia deixe de ser João Ninguém,
mas com as flores no caminho e levando o Silva com honra
ainda vire nessa vida um presidente.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Dois em um
Para quem em silêncio entende

Dividir o nascer do dia
Dividir o tempo
Dividir o filme
Dividir o refrigerante
Dividir a pipoca
Dividir a noite
Dividir a saliva
Dividir o suor
Dividir o banho
Dividir o sono
Dividir o medo
Dividir o doce
Dividir o canto
Dividir o segredo
Dividir a uva
Dividir a estrada
Dividir a esperança
Dividir a roupa
Dividir o custo
Dividir a palavra
Dividir a solidão
E unir os pedaços
Uma gota da infância que o tempo esqueceu de apagar


    Nessa vida há coisas que não podem ser lembradas e outras que, apesar de não terem o menor valor, não se consegue fazê-las esquecer. Remonto a 23 anos atrás, e retorno a minha infância. Salvador, Bahia, ruas de Ondina, Edf. Suécia, Av. Adhemar de Barros, Escola A Aldeia dos Curumins. Esse é o cenário.
    Mil vidas passaram entre 1982 e hoje, mil voltas essa vida deu, e hoje, sozinho num apartamento, numa outra cidade, numa vida há mil por hora e ao mesmo tempo tão ausente de si mesma, me vem uma lembrança de um personagem que atravessou o tempo surreal das memórias da infância.
    Samuel, conhecido apenas como Samuca. Um maluco, ou talvez, apenas um silencioso nômade do vento, perambulando pela via dupla que leva e traz a vida urbana entre a Av. Anita Garibaldi e a Av. Oceânica. Talvez eu morra sem saber quem foi Adhemar de Barros, mas por pouco nasci sabendo quem é Samuca.
    Passei alguns anos, talvez apenas um ano, não sei mais, presenciando Samuca andando sem pressa pelas ruas de Ondina, quase sempre perto de uma padaria, sempre com uma mesma roupa, cor de roupa de maluco de rua. Não lembro se ele tem voz, se ele dizia o que sentia ou o que pensava. Mas lembro que nós o temíamos tanto quanto gostávamos de encontrá-lo no caminho para a escola e chamá-lo de Samuca. Era inofensivo…talvez malucos nocivos não ganhassem apelidos, ou sequer saberia-se o seu nome. Mas em toda minha vida conheci poucos “Samuel” e apenas um eu chamava por “Samuca”. Ironicamente, mas não por acaso, um personagem tão distante da possibilidade de comunicação acabou representando a lembrança mais forte desse nome.
    O tempo não parou, e levou a vida junto. Mudei de cidade… Camaçari, Vitória da Conquista, Ilhéus. Cresci, envelheci, desaprendi a sonhar os antigos sonhos de outrora… e lá se vão, por curvas hoje tortuosas em saudade e solidão, 23 anos…
    Todas as pessoas que vi em 1982, exceto os familiares, já não encontrei novamente. Não, não todas. Como se o tempo espelhasse o passado, como se a vida fosse sempre um círculo, o carrossel da nossa infância, reencontro, agora velho e cansado, com outras mesmas roupas coloridas pela velhice imunda das ruas, o maluco dos tempos de criança. Estranha sensação a de perceber que alguém tão longe da minha rotina, tão distante nesse largo hiato temporal que nos separa, é reconhecido, mesmo por trás das rugas, de uma barba rala e desconcertada, mesmo diante da pressa de quem não poderia sequer falar, mais em tom de despedida do que de reencontro: Oi, Samuca, tudo bem?!
    Estranho imaginar que depois de tanto tempo poderia reencontrar uma mesma pessoa no mesmo lugar de sempre, e perceber que esta é a única alma comum ao meus tempos de infância na singularidade daquele local, minha única testemunha de que um dia eu fui criança cruzando aqueles caminhos. Ao rever aquele personagem, foi instintiva e nostálgica a reação de parar por alguns instantes, e ver o mundo dando uma volta, numa constatação de um reencontro que só poderia ser unilateral e totalmente silencioso. Pois, para aquele senhor de olhar cansado e compenetrado no vazio do espaço, que para mim era um personagem vivo da minha história, eu nada mais era do que mais uma alma vagando sem nome, sem função e sem sentido, como tantos outros loucos efêmeros que vagam anônimos nas ruas desse país.

domingo, 27 de julho de 2008

O que a vida não vê

Eram tantos santos nas esquinas
que a gente se acostuma e finge ser normal
ver a vida contra o tempo, ver o rosto no espelho,
novas marcas, outras rugas, outras roupas no varal

Eram tantos sonhos contra o vento
que no meio das verdades a ilusão é natural
Ter no peito o cais distante para que a qualquer instante
o horizonte nos recorde que viver ainda é real

Era tão difícil ver sentido
num teatro conduzido por um Deus sem ideal
que no limiar das esperanças construímos nas lembranças
novas pontes, outros vícios, para desfazer o mal

Era outra história mal contada,
uma farsa recriada de um outro carnaval
Para ver nas mãos uma promessa de criar na luz do acaso
toda a mágica rasgada pela força racional

Eram tantos anjos nas vitrines
que a fé virava luxo na descrença da nação
Tantos mercadores da poesia a trocar a fantasia
pelo último suspiro, pela vida e pelo pão

E eram tantos outros meros fatos
que nem cabem nos retratos estampados no jornal
E os ensaios do destino e os pedaços do passado
pouco a pouco se desdobram muito antes do final
Ateu

    Achei um louva-a-deus no jardim de casa. Foi inconfundível reconhecê-lo. Foi inevitável tê-lo nas mãos. Talvez represente o louva-a-deus o meu maior fascínio no mundo dos insetos, meu elo com os futuros guardiães da Terra. Era um pequeno ser verde. Um corpo totalmente mimetizado, uma obra-prima tingida magicamente pelas mãos pacientes da evolução. Não, não era uma folha! Poderia ser, mas seus olhos brilhavam como orvalho no topo da pequena cabeça triangular, e cada olho, humanamente, parecia carregar consigo uma espécie de pupila, direcionada para o nada, parecendo perceber tudo.
    Mas não por isso era um louva-a-deus. Era um louva-a-deus porque carregava nos seus braços uma prece, uma prece dissimulada, traiçoeiramente dissimulada. Uma prece fatal. Uma reza a deus nenhum, mas para si próprio, para garantir em frações de milésimos de segundos a sua existência. Suas mãos não traziam flores, mas espinhos, afiados e moldados, mais uma vez pelas mãos humildes da evolução. Suas asas traziam falsos olhos. Olhos amavelmente inofensivos. Inocentemente malignos. Mas ainda era um louva-a-deus. O mito não morreria tão cedo assim. E por ser tanto, carregava consigo um estigma. Que tão imperdoável pecado cometera, para suplicar por tanto perdão? Em que tão insignificante coração repousaria tanta fé ?
    Pensando na sua verdade por trás daquela prece, resolvi dar-lhe um alimento. Um gafanhoto. Um infeliz gafanhoto. Tão infeliz que não seria jamais um louva-a-deus... A guerra das necessidades ganhou seu espaço naquele instante. E num momento quase imperceptível o louvor-ateu justificou suas causas. E Deus, de onde estivesse, perdoou aquele instante. Talvez enxergasse naqueles pequenos olhos tamanha inocência naquele ato. Talvez enxergasse naquele ser a sua imagem e perfeição, seu melhor ator no teatro da vida. Sem máscaras, sem drama, sem enredo algum.



Para preservar a magia

Vamos tentar ouvir o som do presente instante
Vamos esquecer a cor do diamante
Vamos lembrar que os olhos brilham sem explicação
Porque há explicações que destroem o sentido mais puro
Porque há valores escondidos na janela d’alma
E no último segundo da despedida o adeus perde o rumo,
E no último instante, o coração deixa uma porta entreaberta
para quem quiser entrar escondido, sem avisar
Vamos sentir o eco da pulsação
Rimar o tom da chuva com o blues do coração
Vamos imaginar um mundo no ínfimo grão da areia
Eis ali o entender da plena existência, sem erros nem acertos
Vamos fazer inédito o quotidiano retilíneo,
semear cores novas no que desbotou pelo desgaste dos segundos vãos
Sentir a vibração da nave-mãe a nos levar no tempo-espaço,
Sem medir segundos ou quilômetros
Porque há razões que não precisam ser lembradas
Ou faltará o ar para alimentar a magia
Vamos olhar de perto o pequeno verme a navegar no chão,
feliz por não ter que racionalizar sua existência,
Descobrir no seu íntimo a essência única do ser,
sem ideogramas, cronometragem, sem analogias, sem modismos,
sem precisar sonhar com o que não terá um dia
Vamos ouvir calados a sinfonia dos ventos nos vitrais
Numa catedral, numa fábrica, num apartamento escuro, no meio dos arranha-céus.
Ou faltará a magia pra alimentar os ventos,
Ou faltarão os ventos para mover o moinho dos nossos sonhos.