sábado, 15 de agosto de 2009

As mentiras da arte

A imagem na tv mostrava uma tela de 4,0 m de comprimento por 2,0 m de altura, toda branca, mas no seu centro uma linha grossa traçada cegamente por um pincel platicérdico deixava uma carga de tinta preta que gradativamente ia se exaurindo na distância entre o toque de pincel e seu último ponto de contato com a tela... o que mais? nada! Só isso... em resumo: uma faixa de tinta preta cruzando a linda e limpa tela vazia. E ao lado desta, uma figura humana vomitava explicações durante dois minutos, tentando dar forma e essência ao disforme. Como se já subjulgasse que aquilo não seria entendido por arte, e sentisse então a necessidade de dar o mísero tiro de misericórdia diante das câmeras: explicar o inexplicável; fazer presenciar sentimento onde não há nada o que sentir. Numa outra sala, uma parede branca... Nela quatro pedaços de madeira velha pregados um sobre o outro, formando um polígono irregular com um centro vazado... madeiras sem cor: só cor de madeira. Como se uma criança houvesse encontrado tais pedaços no quintal da casa e tivesse então a idéia de pregá-los apenas para passar o tempo, após brincar de esconde-esconde, no fim do dia, no curto intervalo que antecedia o momento em que sua mãe a chamaria para tomar banho. Mais uma vez, uma figura trajada em uniforme de pseudointelectual proferia explicações abstratometafisicoexistenciais acerca do resto de fogueira de São João aproveitado da madeira que não se queimou. Não muito longe, uma cadeira, velha, porém inteira e aparentemente usável ainda. Sobre ela uma vela, no centro de um prato. Dessas que a gente acende quando falta luz.
Eis, senhores, a Arte Moderna... quem inventou essa expressão? Quem fez conceber, na existência da arte universal deste século e do século que morreu, o âmago de que se alimenta a pátria dos picaretas? E o pior, a pátria do pai do pai do pai dos picaretas, que é aquele que ainda gasta suas cordas vocais explicando com uma vagabunda complexidade, o significado daquilo que audaciosamente ousam incluir no valoroso rol do que se chama arte. Recebo um e-mail: era a divulgação de um projeto musical. Li calmamente o conteúdo, os anúncios, a descrição. No final uma banda é citada, e em seguida a menção: "Considerado o melhor álbum brasileiro do ano pela revista Rolling Stone". Pois bem. Pensei: "Humm... suspeito, muito suspeito! Desde quando revista de música é termômetro de qualidade musical, principalmente quando tem intenção de ser??!!" E repensei: "Mas e aí? Porque eles estão sendo citados nesse tal projeto e porque, afinal, seriam citados na revista, não obstante todo o meu indiferentismo aos rótulos termométricos"? Resolvi tirar a dúvida, acreditando - por pura fé que tenho de ver coisas novas e de qualidade rolando no cenário midiático (é bom que se diga, afinal para muito além das irradiações radiotelevisivas, especialmente em se falando de Bahia, o que mais tem é gente fazendo música boa e tentando respirar e expirar sua arte em meio à poluída poeira sonora que pesa sobre todos os ares, de tchacos, tchecas, subidinhas, descidinhas, aiaiais, ieieiês e uiuiuis) paupérrimo que impera na cultura musical nacional dos últimos anos - que de repente algo de bom poderia chegar aos meus tímpanos. Qual o quê! Fiquei me perguntando por qual parâmetro revistas de música escolhem um nome e dizem: "este é o melhor álbum deste ano", após ter percebido que o que ouvi era um conjunto de músicas sem nada mais além do lugar-comum, sem absolutamente nada de interessante ou novo, sem melodia, sem arranjos... mais uma banda executando um bando das mesmas coisas de sempre, soando um mesmo som tal qual tocam milhares e milhares de outras bandas que apenas aumentam a poeiria escassez de arte, novidade e de sensibilidade de que se sustenta a música atual.
Juntei os trapos... a exposição de arte ali vista na tv e a facilidade com que se classifica de "melhor música", "melhor álbum" o que está distante de assim se enquadrar de fato. Parece que o que se extrai dessa soma é o entendimento de que arte é absolutamente tudo aquilo que se respira. Simples assim: se eu vou no lixão eu posso catar o resto de tampa de privada e a lata de leite em pó enferrujada e colocá-los sobre um velho tapete vermelho (a lata disposta dentro do espaço deixado pelo resto de tampa de privada, é esteticamente necessário ressaltar!) e transformar isso em uma fenomenal elaboração artística... afinal, eu respirei o aroma sobre-humano do lixão quando os coletei. Se eu junto um osso do fêmur de uma vaca encontrada morta, putrefata, na fazenda de um amigo com uma fronha do travesseiro que eu dormia, formando uma letra T branca (da seguinte maneira: o osso (branco, tratado com cloro) na vertical, e no seu topo, em disposição horizontal, a fronha enrolada esguiamente em linha reta no seu próprio comprimento, tendo no meio desse comprimento o contato direto com o topo do osso), isso é o que há de mais claro na arte. Afinal, eu respirei a vaca putrefata enquanto lhe retirava com cuidados cirúrgicos o seu fêmur, e mais que obviamente respirei por noites seguidas a fronha que viria compor o meu projeto artístico.

Mas e então? Penso o seguinte para ser "o cara" (e como para ser "o cara" basta ter cara para ser vista, barba e boca que fale à torto e a direito, então estou "bem na fita", pois tenho a tríade supracitada) da próxima exposição de artes: vou passar quatro dias seguidos comendo apenas mamão e abóbora, para então evacuar uma linda elaboração alaranjada, toda alaranjada!! Colocarei então sobre um prato branco, de sobremesa. Qual linda e maravilhosa não será minha bicolorida obra de arte (juro que esse trocadilho ridículo não iria existir até o ponto final desse texto), han?! Mas talvez eu tenha que fazer uma foto e expor o meu trabalho apenas por essas vias, colocando a imensa foto na parede da sala de exposições, já que, de outro modo, em vias concretas, minha bela elaboração artística sofreria a injustiça de ser explicada em tons anasalados de voz, com a troca do M pelo B (babão ao invés de mamão, já pensaram?), por efeito do uso de pregadores no nariz do locutor-explicador (que não seria eu, pois infelizmente não saberia desenvolver elucidações abstratometafisicoexistenciais acerca da minha própria arte). Decerto ganharia o Prêmio Nobel de Arte, tal seja — mais do que a arte pela arte — a obra pela arte e a arte pela obra.

2 comentários:

Poemas de Sótão e Porão II disse...

Excelente!
Tudo e tudo. Desde o apurado olhar crítico, ao ácido humor lírico-sarcástico.
Dá pra fazer um filme de arte pós contemporânea. Eu disse arte?
Vou pegar um gatinho, deixá-lo passeando sobre uma pastosa lama vermelha, e depois levá-lo a caminhar suavemente sobre as telas. E pronto, eis a exposição: "As Poéticas Nuvens Vermelhas de Hiroshima durante um Belo Por de Sol na Terra do Sol Nascente". E arrebatarei o "Grand Prix Mondial de la Peinture".
Bravo para o meu gatinho!
Eu mereço...

Unknown disse...

Dessa vez você atingiu em cheio! Foi cruel, triplamente ácido, se é que que posso assim denominar! Mas não a acidez costumeira, de quem aponta sarcasticamente o infame. Findei a leitura sentindo o peso da minha cabeça sobre o punho e no reflexo da tela (do computador!) minha carregadíssima expressão sutilmente delineada.
Quem sou eu que ouso dizer isso? O que sou eu diante das cabeças pensantes desse mundo? O que é que sai de mim, como comumente ocorre com com corpos e almas explêndidos de "arte", ou nela? NADA! NINGUÉM! Absolutamente 'caminhante', 'errante'; e não menos ciente de que, de fato, não é toda merda que rende arte, mas em meio ao que há de ser merda para uns, talvez pela ausência de explícita sensibilidade (irrelevante falar de amor!), salvar-se-á uma pérola e, nesse instante, o "mercúrio" transcende os limites do capilar, como nos desenhos animados que outrora considerava arte (?!). Enfim, o termômetro sou eu.
Que sirva tal discurso ao Projeto Música do Mato. E se cada um fala o que quer, raciocine o pensar, em sua forma mais estrita!