Vê. Ainda trago nos olhos aquele brilho que um dia vistes.
Talvez sem tanta certeza no olhar. Mas ainda brilham.
Meu pequeno mundo ainda cabe no canto escuro do porão.
E continuam vivos aqueles tantos sonhos que sonhei um dia.
Decerto já nem são mais tantos, mas ainda estão guardados,
no fundo abismo da esperança vã. Adormecidos pela canção do tempo.
Aquela fotografia resiste, entre os papéis de outros passados,
pobre refém do meu medo de mudar as coisas.
E o mais difícil é entender por que, se no meu silêncio as imagens não têm tempo,
e a voz que ainda ecoa já não é a que eu queria.
Quem sabe um dia, sem medo, nossos destinos se encontrem novamente.
E a nossa vida gire feito um jogo, feito criança, o carrossel da nossa infância.
E o tempo avise que sonhar não é preciso, e que o fruto que deixamos voltou a ser semente.
Voltassem então os velhos vícios de achar no tom toda a magia de cada erro e cada acerto.
A velha estrada unindo a mesma sina, e os mesmos passos caminhando para um mesmo fim.
Sem o cais a nos dizer que é hora de voltar, de chegar, de temer o horizonte mais distante.
Minha poesia está mais pobre, tenta respirar a pouca loucura que me resta.
Já nem escrevo cartas, não penso em mudar minha feia caligrafia. Muito menos o mundo.
Pouco a pouco, com uma coragem incerta, tenho cantado minhas canções,
fiéis testemunhas da minha timidez.
Mas, além dos riscos, por trás das luzes, rasgando a superfície do meu pequeno dia-a-dia,
Ainda sou eu a escrever essas linhas, sem razão, sem pressa, sem rimas, sem ensaios, sem enredo.
Tentando imitar as curvas do tempo, tentando traduzir a vida. Torto, mas lúcido: como há de ser.
Do tempo dos sonhos II
Vê, mais uma vez o tempo é rei e escravo
Quem dera sermos nós naqueles tempos, quem dera fôssemos filhos
De ventos de moinhos que um dia giraram por nós
Quais flores ainda passam pelos nossos jardins?
Se hoje são tanto mais pedras que a vida que um dia por ali passou?
Quem herdará nossos cantos, quem fará vibrar o tom da voz dos que virão,
Se do tempo que nos sobra tão pouco há para se fazer cantar?
deuses ateus e descrentes, sobre o vão dos nossos céus
Quem dera sermos mais, sermos os filhos e pais do sonho que se plantou
Quem dera, talvez, sermos tanto que nem mesmo nosso canto pudesse se traduzir
Ai do cais, que aprendeu a não se despedir dos que se vão,
Ai de nós, que nunca aprenderemos com o cais
que os tempos que se vão já não nos voltam mais.
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